Para o autor, a Atenção Primária tem uma longa história no sistema
público de saúde brasileiro que se inicia na primeira metade do século
passado até chegar ao Programa da Saúde da Família (PSF). A análise do
PSF mostrou que essa política de atenção primária foi um sucesso dentro
dos limites em que ela se desenvolveu. Contudo, a permanência de
problemas estruturais não solucionados fez com que esse ciclo evolutivo
do PSF se esgotasse. Para Vilaça, é necessário inaugurar um novo ciclo
que vai se caracterizar pela consolidação da Estratégia da Saúde de
Família (ESF). No livro, ele aponta os problemas estruturais que impedem
a APS de ser resolutiva e ordenadora das Redes de Atenção à Saúde
(RAS’s) e sugere soluções para cada um desses problemas.
Eugênio Vilaça descreve ainda, nessa obra, as principais mudanças na
APS para o manejo das condições crônicas e traz experiências nacionais e
internacionais de instituições de saúde que ousaram mudar o modelo de
atenção. Saiba mais nesta entrevista exclusiva que Eugênio Vilaça
concedeu à equipe do Portal.
1 – O que motivou a escrever o livro O Cuidado das Condições Crônicas na Atenção Primária à Saúde?
Eugênio Vilaça – São dois motivos básicos: primeiro é a dimensão da
expansão das doenças crônicas e, outro, a crise fundamental do Sistema
Único de Saúde (SUS). A crise do SUS possui, de um lado, um componente
de subfinanciamento muito forte, mas há outro, que mesmo tendo mais
dinheiro não adiantaria que é a crise do modelo de atenção à saúde. Essa
crise surge nos últimos 60 anos em função da mudança muito rápida tanto
na transição demográfica como na situação epidemiológica. Na metade do
século passado, quase metade das mortes eram decorrentes das condições
agudas e hoje o percentual está abaixo de 5%. A situação de saúde,
nesse período, caracterizou-se por um envelhecimento muito rápido da
população e um aumento muito grande das condições crônicas em geral e
das doenças crônicas em particular. E o SUS não se adaptou a isso. Ainda
temos uma situação de saúde com tripla carga de doenças, com doenças
infecciosas e parasitárias convivendo com causas externas e com a grande
hegemonia de doenças crônicas. Paralelo a isso, o sistema que
praticamos ainda é um sistema gerado na metade do século passado voltado
para as condições agudas. Isso não deu certo nos países ricos e não
está dando certo aqui. Então, essa dimensão mais ampla, mais macro,
repercute muito forte no ambiente micro, na forma como a clínica é
feita, especialmente, a clínica médica. Esse sistema fragmentado,
reativo, episódico e voltado para condições agudas e para as agudizações
das condições crônicas não dá conta da hegemonia das condições
crônicas. No plano micro, tal como revela a experiência internacional
visitada no livro, a clínica dos eventos agudos não pode ser
transplantada automaticamente para a clínica das condições crônicas. A
resposta para essa crise no plano macro foi apontada com o livro sobre
Redes de Atenção à Saúde (RAS’s) que mostra a necessidade de superar o
sistema fragmentado, reativo, episódico por um sistema integrado,
proativo e contínuo e que dê conta das condições agudas e das crônicas.
As RAS’s já estão na agenda do SUS, na legislação e agora começa a ser
implantada no Brasil. A experiência recente de implantação das RAS’s
mostra que a maior dificuldade não está na média e alta complexidade,
como o senso comum indica, mas na organização da APS para que ela
resolva 85% dos problemas e para que ela ordene a RAS. Sem uma APS forte
as RAS´s não operam. Acho que esse é o dilema que está no Brasil
agora. Há uma dificuldade muito grande de se entender isso. Há uma
fixação muito grande nas políticas de média e alta complexidades. A APS
que nós praticamos não dá conta da epidemia das condições crônicas.
2 – O que une e difere entre este livro que será lançado em
abril e o último sobre Redes de Atenção à Saúde, disponível no Portal
para Gestores?
Eugênio Vilaça – O que une um livro ao outro é o modelo de atenção à
saúde. Tanto que eu trago neste livro muitas partes do livro anterior.
Pode até dar impressão a quem ler de que seja o mesmo livro, mas não é.
No outro livro eu discuti o modelo de atenção à saúde em função das
RAS´s e neste eu discuto o mesmo modelo mas com um foco específico na
APS. Faço uma análise da situação da APS desde 1920 até hoje, identifico
sete ciclos durante esse período. Eu destaco de forma substantiva as
evidências científicas que confirmam o sucesso do Programa Saúde da
Família (PSF). Há muita produção acadêmica mostrando que o PSF é melhor
que a atenção primária tradicional. Concluo que o PSF não fracassou como
muita gente pensa, mostrando resultados sanitários profundos produzidos
pelo PSF. Contudo, há problemas no PSF decorrentes, não do modelo em
si, mas de fatores estruturais não superados, que não permitem que o
discurso oficial de transformar o PSF em Estratégia Saúde da Família
(ESF) deixe o nível semântico para ser uma mudança de paradigma.
3 – O senhor afirma que o PSF não fracassou, mas está
esgotado. Quais são os problemas estruturais que o senhor identifica no
livro?
Eugênio Vilaça – Em um capítulo específico eu identifico 14 problemas
estruturais do PSF que confluem para determinar uma baixa valorização
sanitária, social e política do PSF. Para cada um deles traço uma agenda
para resolvê-lo, visando uma APS resolutiva e ordenadora das RAS´s. São
problemas que envolvem questões ideológicas de concepção da APS;
problemas de infraestrutura, porque apenas 25% das Unidades de Saúde tem
infraestrutura mínima para operar; de relações de trabalho, com a maior
parte dos profissionais com contratos precários; problemas da educação,
tanto na graduação, que forma profissionais na perspectiva da
especialização, quanto na pós-graduação, com apenas 10% dos médicos com
residência em medicina da família e da comunidade; fragilidade
institucional; baixa densidade tecnológica; carência de equipes
multiprofissionais; ausência de prontuários familiares eletrônicos;
problemas gerenciais; fragilidade do controle social no âmbito local; e
problema de financiamento muito reduzido, enfim são grandes problemas
que não foram solucionados e que impedem a consolidação da ESF.
4 – Quais as principais mudanças na APS para o enfrentamento das condições crônicas?
Eugênio Vilaça – Primeiro é necessário superar os problemas
estruturais que descrevo no livro e ter uma atitude diferenciada. Um
problema complexo não admite uma solução única, mágica, rápida. Problema
complexo convoca uma solução complexa, sistêmica, demorada e não muito
barata. O livro está muito focado no manejo das condições crônicas na
APS. O capítulo gira em torno do modelo de atenção às condições crônicas
(MACC) que eu desenvolvi no livro de RAS, que no fundo é uma composição
entre três modelos: o modelo de atenção crônica do MacColl Institute, o
modelo da pirâmide de riscos e o modelo da determinação social da saúde
de Dahlgren e Whitehead. O MACC aplicado à APS tem cinco níveis: da
promoção da saúde, da prevenção das condições crônicas, da clínica das
condições crônicas menos complexas, das condições crônicas mais
complexas e das condições crônicas muito complexas. Os dois primeiros
atuam antes que condições crônicas se estabeleçam; os três outros
constituem intervenções clínicas sobre condições crônicas estabelecidas.
Aí mostro que essa clínica da nova APS, a ESF, tem que passar por
mudanças profundas. Para isto, listo alguns movimentos que precisam ser
feitos para transformar essa clínica. Por exemplo, da atenção centrada
na doença para a atenção centrada na pessoa; da atenção centrada no
indivíduo para a atenção centrada na família; a busca de um equilíbrio
entre a atenção à demanda espontânea e a atenção programada; a
introdução de novas formas de atenção como atendimentos em grupos e à
distância; o fortalecimento do trabalho multiprofissional da ESF com a
introdução, como membros das equipes de novos profissionais como o
assistente social, o farmacêutico clínico, o fisioterapeuta, o
nutricionista, o psicólogo e o profissional de educação física. O livro
mostra que APS é muito complexa, mais complexa que atenção secundária e
terciária. Essa complexidade exige uma nova forma de gestão, porque
hoje mais de 90% das UBS não têm um gerente, um profissional de nível
superior. A proposta é criar a figura do gerente da APS com dedicação
integral, com curso de gerência para a APS. A outra proposta é
introduzir as tecnologias de gestão da clínica, especialmente, as
diretrizes clínicas baseadas em evidência, a gestão da condição de saúde
e a gestão de caso. Essa é um pouco a idéia do livro.
5 – Mas qual característica essencial do modelo de manejo das condições crônicas na APS que o senhor destacaria?
Eugênio Vilaça – Destaco três características essenciais. Primeira, a
questão da gestão baseada na população que vai substituir o modelo
hegemônico no SUS da gestão da oferta. Segunda, a estratificação de
riscos. Hoje o PSF não estratifica o risco de portadores de condições
crônicas. Maneja-se um portador de hipertensão de baixo risco da mesma
forma que um portador de hipertensão de alto risco. Isso é um desastre
econômico, pois fecha a agenda do médico e do enfermeiro, e um desastre
sanitário porque o hipertenso de baixo risco está indo a um
especialista, o que, muitas vezes, gera iatrogenia. Então todo o manejo é
feito a partir da estratificação de risco da condição crônica. Sabemos
que 75% dos portadores de condições crônicas não necessitam de cuidados
de especialistas; eles devem ser manejados na APS com uma baixa
concentração de consultas médicas e de enfermagem, mas com concentração
maior de ações de autocuidado apoiado prestadas por equipes
multiprofissionais. Só uns 25% dos crônicos vão necessitar de maior
concentração de consultas de médico e de enfermagem e só uma parte
desses é que precisará ser referida aos especialistas. A terceira, que
já me referi, é o autocuidado, o portador de condições crônicas deve ser
apoiado pela equipe de saúde para se autocuidar.
6 – O livro tem em torno de 1.200 referências bibliográficas e
trinta boxes com experiências de manejo de condições crônicas na APS e
no exterior. No Brasil há avanços na implantação do modelo de atenção às
condições crônicas?
Eugênio Vilaça – No Brasil há muita gente que está começando a pensar
em mudar o modelo. Uma coisa importante foi o Plano de Ações
Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas não
Transmissíveis que o Ministério da Saúde lançou em 2011. Esse plano
acolhe o modelo de atenção crônica que foi utilizado por mim no modelo
que desenvolvi. Há experiências que são feitas no Brasil, algumas bem
estruturadas como a que está ocorrendo em Curitiba. Também temos a
experiência de Diadema, do Grupo Hospitalar Conceição em Porto Alegre,
da Unicamp com alguns municípios da região e a do Qualidia, com 10
municípios envolvidos. São experiências recentes mais que apontam para
uma melhor abordagem das condições crônicas na APS.
7 – O que os profissionais e gestores da saúde podem esperar
do Laboratório de Inovações sobre Condições Crônicas na APS, iniciativa
da Opas/Brasil com Conass e apoio do Ministério da Saúde, Conasems, SES
PR e SMS Curitiba que está sob sua coordenação?
Eugênio Vilaça – Nós vamos acompanhar mais de perto algumas
experiências do manejo de condições crônicas na APS. Já estamos
acompanhando a de Curitiba que durante um ano discutiu a concepção do
modelo de atenção às condições crônicas. Em Curitiba estão sendo
validados alguns instrumentos como o atendimento compartilhado, chamado
de “Cuco”; o ACIC e o PACIC, ferramentas que avaliam se as unidades da
ESF são capazes de implantar o modelo de atenção às condições crônicas,
nas perspectivas da equipe e dos pacientes; a introdução de novos
profissionais. Agora, Curitiba entra na fase de uma pesquisa avaliativa
em seis unidades básicas de saúde, comparadas com seis unidades
controle, que será realizada por uma instituição acadêmica durante um
ano, em termos de resultados intermediários em relação à depressão,
hipertensão e diabetes. Então, o Laboratório de inovação vai acompanhar
todo esse processo e divulgar os resultados, permitindo assim a produção
de evidências e a reprodução do modelo por outras secretarias de saúde.
8 – Como se faz para sensibilizar o gestor para que esse tema entre na agenda política e técnica da secretaria de saúde?
Eugênio Vilaça – A gente só vai sensibilizar o gestor para essa
questão se nós tivermos evidências. Por exemplo, Curitiba quer produzir
evidências dizendo que nas seis unidades básica de saúde que implantaram
o modelo foi possível controlar a hemoglobina glicada do diabético
melhor do que nas unidades em que não foi implantado o modelo. Não será
uma mera convocação ideológica, ainda que tenha elementos de mudança
nesse campo, mas com evidências. O modelo de atenção crônica está muito
testado nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e outros países, mas não
no Brasil. E o livro, além da parte conceitual, também é bem didático.
No fim do livro, por exemplo, apresento um check-list para direcionar o
profissional de saúde na elaboração de um projeto de manejo de condições
crônicas na APS.
O livro está disponível para download no Portal para Gestores sobre Redes e APS – www.apsredes.org
Vanessa Borges
Agência de notícias do Portal Redes e APS